sábado, 23 de abril de 2011

Trajetória dos Farmacêuticos nas Farmácias Comunitárias: eles são realmente necessários?

Na década passada escreveu o grande escritor Monteiro lobato esta famosa descrição do profissional farmacêutico: O papel do farmacêutico no mundo é tão nobre quão vital. O farmacêutico representa o órgão de ligação entre a medicina e a humanidade sofredora... É quem atende às requisições a qualquer hora do dia ou da noite... É um verdadeiro cidadão do mundo. Porque por maiores que sejam a vaidade e o orgulho dos homens, a doença os abate - e é então que o Farmacêutico os vê. O orgulho humano pode enganar todas as criaturas: não engana ao farmacêutico.”
            Certamente hoje o escritor seria mais cauteloso nas tão idealizadas considerações. Essa cautela se daria não pela diminuição da importância do profissional, mas talvez pela atual imagem da profissão na sociedade.
O farmacêutico ao contrário dos boticários de outrora perderam sua legitimação social, e com o tempo deixaram de ser reconhecidos pela comunidade. Tudo começa a mudar após a Segunda Guerra Mundial, com o avanço da indústria farmacêutica e produção em larga escala de medicamentos, que se tornam “produtos comerciais” especializados. A farmácia deixa de ser uma extensão dos serviços de saúde e se transforma em mais uma “loja” como agora denominam as grandes redes varejistas.
Sem função definida nessas novas “lojas” o ensino dos novos farmacêuticos passa por profundas modificações nos currículos, porém ao contrário dos exemplos europeus e americanos que investiram na formação de profissionais clínicos cada vez mais envolvidos nos cuidados de saúde, no Brasil em 1962 o currículo mínimo de farmácia é redefinido, priorizando a formação de um perfil para exames laboratoriais e indústria farmacêutica. Esta forma de ensino acabou por fragmentar o conhecimento, e a discussão sobre sua area de atuação ganhou corpo. No ano de 1965, Ministro da Educação recomendou ao Conselho Federal de Educação para acabar com o curso de farmácia e reorganizar a atuação em escolas de química. O parecer nº 287/69 do CFE, estabeleceu um novo currículo, tornando o farmacêutico ainda mais distante da farmacia com a organização das habilitações na area de Industria e Bioquimica.
Com o movimento de criação dos profissionais biomédicos na década de 70 a profissão vê uma grande ameaça para área das Analises Clinicas que estava em ampla fase de expansão. 
Uma importante reação para a classe acontece com a publicação da Lei 5991/73 que estabelece entre outras normas a obrigatoriedade da presença dos farmacêuticos nas farmácias sejam elas públicas ou particulares. Com isso legalizou-se a atuação do farmacêutico criando uma demanda de campo de atuação muito além da oferta disponível desses profissionais no Brasil. E é na aparente “oportunidade” que se consolida a crise da profissão.
Num paradoxo descomunal as universidades passam a formar profissionais que não atendem a necessidade social estabelecida, encontramos um universo enorme de estabelecimentos farmacêuticos carentes da atuação de profissionais capacitados e em contra partida cada vez mais se formam farmacêuticos cientistas voltados para uma atuação bastante tecnicista na produção de medicamentos ou em análises biopatológicas.
Resultado: o farmacêutico que não foi formado para atuar em “farmácias” não reconhece sua função social e passa a achar essa atividade “pouco relevante” e de certa forma “inferior” as demais áreas de atuação, encarada pela maioria como um “bico” ou sinônimo de “fracasso profissional”. Começa então a se espalhar pelo Brasil a prática das “Assinaturas de Farmácia” onde o profissional aceita receber um valor inferior ao piso salarial para emprestar seu nome ao estabelecimento que por lei necessitaria de um Responsável Técnico (RT). A pratica se tornou tão comum que havia casos, por exemplo, de farmacêuticos que residiam na Paraíba e possuíam mais de 20 responsabilidades técnicas em Sergipe!
Não há como se valorizar o trabalho quando ele não existe e como era de se esperar a sociedade passou a não reconhecer o papel dessa profissão, muitas vezes confundida com o oficio de balconista ou de dono de farmácia. Porém, nenhum momento foi tão ameaçador a profissão farmacêutica quanto a publicação do projeto de lei nº 4.385 /1994 da então senadora Marluce Pinto que propunha a não obrigatoriedade da presença do farmacêutico em drogarias.
A medida da então senadora parece que teve um efeito agregador da classe farmacêutica que passou cada vez mais a lutar pela valorização do profissional e da farmácia como estabelecimento de saúde. Com atuação dos conselhos de classe, sindicatos, docentes e movimento estudantil a profissão passou a rediscutir sua atuação na sociedade e o papel da universidade na formação destes profissionais.
Cada vez mais a população passou a ter conhecimento dos perigos dos medicamentos e temas como automedicação, acesso a medicamentos essenciais, uso abusivo, reações adversas passaram a fazer parte das pautas de discussões da saúde pública. Em 1999, após diversas apreensões de medicamentos falsificados é aberta no congresso nacional a CPI dos Medicamentos que passa a tornar ainda mais difundida a discussão sobre o setor farmacêutico.
Nesse mesmo ano é criada a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) que nos mais de 10 anos de existência tem regulamentado o setor de medicamentos, elaborando medidas que a cada ano tentam modificar a visão estritamente mercadológica da farmácia e dar maior legitimidade a novas atuações do farmacêutico comunitário como sanitarista.
Em 2002 novas diretrizes reformulam os currículos de farmácia onde a partir de agora a universidade deve paulatinamente modificar a formação deste profissional para atender aos novos anseios da sociedade com destaque para a promoção do uso racional de medicamentos verdadeira essência deste profissional com múltiplas atividades.
Quando fazemos uma análise da imagem do farmacêutico podemos dizer que a fotografia atual ainda é ruim (baixos salários, excesso de jornadas, condições de trabalho precárias, pouco preparo para atender as demandas clinicas da sociedade, há ainda um percentual muito grande de “assinaceuticos”, com estimativas de aproximadamente 40% em estados como o RJ, e 60% em estados do NO/NE), porém percebemos que o filme de uma maneira geral é muito bom, já conquistamos muito, já conquistamos diversas regulamentações que legitimam o nosso papel social e muitos seguimentos já reconhecem a nossa importância.
Hoje tenho a nítida certeza de que o grande desafio a ser enfrentado para a valorização social do farmacêutico é o próprio profissional que deve de uma vez por todas entender que tem um compromisso como qualquer outro profissional de saúde de lutar pelo combate as mazelas sociais que acometem a cada dia os seres humanos que se vêem abatidos pela doença.  E que talvez esperem como Monteiro Lobato ver o trabalho do farmacêutico ser para eles tão nobre, quanto vital.       
Sou Farmacêutico, luto pelo Uso Racional de Medicamentos e a cada vez que durmo com a consciência tranqüila por não assinar uma farmácia e lutar pela valorização da minha profissão sei que estou ajudando a todos que sofrem pelos danos causados pela falta, excesso ou pelos diversos erros nos tratamentos medicamentosos.